Lembrando Kerlon e preservando Neymar

O texto que segue abaixo reproduzido no Blog DNA Santástico foi extraído de coluna originalmente publicada no site Ribeirão Preto Online.

O autor é o jornalista e ex-narrador esportivo Sr. Flávio Araújo, amigo que tive a honra de conhecer pessoalmente. 

Flavio Araujo - Blog DNA Santastico
Sr. Flávio Araújo

Faz bastante tempo que o fato se deu: transmitia da Vila Belmiro um Santos x Botafogo de Ribeirão Preto na noite de 9 de março de 1968 e tive a felicidade de narrar um lance inusitado que marcou mais que o jogo em si (Santos 5×1) e está vivo na minha memória.

Creio que dormitava na mesma quando foi acordado por fatos recentes.

Kaneko, um nissei de curta carreira em nosso futebol foi o protagonista do mesmo em favor do Peixe e em cima de Carlucci, zagueiro do Botafogo.

Na época o drible desconcertante e de efeito plástico digno das melhores telas dos mais consagrados pintores não tinha ainda um registro com nome a defini-lo.

Era um chapéu ou lençol, mas com a característica de um boné com abas ao contrário, bem moleque mesmo, já que a bola foi levantada pelos calcanhares do driblador, cobrindo o driblado e pelo protagonista apanhada mais à frente.

No lance em questão Kaneko dominou a bola depois do drible desconcertante e cruzou para Toninho Guerreiro que foi às redes do Botafogo.

A finta teve um efeito extraordinário não só na plateia que se levantou para aplaudir, mas até nos jogadores do Botafogo que ficaram como que paralisados pela ação inusitada que presenciavam.

Já contei que conhecia o lance dos jogos do Escrete do Rádio quando Oslain Galvão, cantor profissional, mas muito bom de bola e que brilhava em nossos jogos como convidado o aplicava amiúde.

No futebol profissional, aos meus olhos que tanto viram do mesmo, Kaneko foi o precursor e depois alguns poucos jogadores o aplicaram em partidas de maior visibilidade.

Leandro Damião, do Internacional de Porto Alegre fez uso do boné de abas viradas num jogo da seleção brasileira contra a Argentina e a ação correu mundo depois de causar tremendo estardalhaço na plateia e acabou mesmo sendo a sensação daquele cotejo que terminou sem gols, carretilha a parte.

Leandro Damião ficou como uma espécie de pai da criança, porém, outro jogador sulino, este do Grêmio, Fabio Baiano, também o aplicou que eu vi e existem ainda outras versões da mesma ação espalhadas mundo afora.

Foi, porém, só a partir do lance de Damião que passaram a chamá-lo de carretilha, lambreta, chilena e outros apelidos.

Neymar o aplica e é dos mais hábeis fintadores que temos no nosso futebol tendo um repertório dos mais amplos que aprimora criando novos lances de efeito seguidamente.

Vem de inventar nova versão para o lençol levantando a bola que descia à sua frente batendo-a no gramado com a sola da chuteira e dando a mesma um efeito por sobre o adversário e depois a recolhendo como na complementação do lençol tradicional.

Por coincidência num outro jogo do Santos diante do Botafogo de Ribeirão Preto.

Ao mesmo tempo que esse tipo de ações faz a alegria dos torcedores cria em quem sofre os efeitos de uma pretensa situação de humilhação.

Temo por Neymar.

Apanha mais em cada partida do Santos do que Messi e Cristiano Ronaldo, as maiores estrelas midiáticas do futebol mundial apanham em conjunto.

Neymar é o último dos moicanos a dar espetáculos seguidos em nosso futebol, embora este seja tão rico em valores que nesta semana um desconhecido jogador do Bragantino, Diego Macedo, marcou um gol de Neymar (fez fila exatamente na defesa do Santos) e, graças ao deus dos estádios não foi trucidado por isso.

Mesmo os dias sendo outros ainda me recordo quando o menino Kerlon (tinha então 19 anos) recebeu uma entrada violentíssima do zagueiro Coelho, ex-Corinthians e na época no Galo, num jogo pelo Brasileirão de 2007 que o Cruzeiro venceu por 4 a 3.

Kerlon criou um lance com marca original e que recebeu o nome de drible da foca e a ele, driblador, o apelido de Foquinha.

O garoto tinha qualidades e não foi apenas o seu drible espetacular que o transformava como uma das esperanças no futebol brasileiro onde já atuara pela seleção sub-17.

Kerlon conduzia a bola com embaixadinhas com a cabeça e ao mesmo tempo que trazia algo novo não havia no mesmo nenhuma intenção de menosprezo aos adversários.

Um drible de efeito como os muitos que Neymar aplica em quase todas as partidas.

São outros os tempos e cito alguns exemplos de fintas desconcertantes, estas sim humilhantes, e que no passado faziam a alegria das torcidas e não provocavam cóleras no driblado.

Era considerado como um recurso extraordinário de quem sabia e por ai ficava.

Garrincha driblou tanto ao argentino Vairo numa partida do Botafogo contra o River Plate na cidade do México que o marcador deixou o campo consolado e literalmente sustentado pelos braços de seu companheiro Nestor Rossi e depois foi substituído para que a humilhação não tivesse sequência.

O público aplaudia e vibrava e Vairo não tentou em momento algum revidar com agressão ao espetáculo proporcionado pelo “anjo das pernas tortas”.

Luizinho, do Corinthians, o Pequeno Polegar, driblava a própria sombra.

Quando, porém, sentou-se na bola depois de tantas fintas no argentino Luis Villa, do Palmeiras, considerou-se que aquela sim era uma forma de humilhação ao adversário.

Nestor, ponteiro do Vasco e que atuou em diversas equipes inclusive no Palmeiras, no fim de carreira quando jogando pelo XV de Jau, talvez por algum ressentimento, depois de driblar alguns jogadores palmeirenses também sentou-se na bola em atitude irreverente e humilhante ao adversário.

As fintas de Neymar são pura demonstração de uma alegria que o futebol está perdendo e que ainda pode proporcionar mesmo que algumas vítimas não a aceitem.

Nunes, do Botafogo, foi enfático em proclamar que teve que pensar até 10 para não “quebrar” literalmente a Neymar quando este o driblou com sua versão do lençol ou chapéu.

O caso de Kerlon é o mais emblemático que conheço e na época levantou extensa polêmica no futebol.

Pela agressão no citado jogo no Mineirão o lateral Coelho pegou 120 dias de suspensão, mas logo depois teve a mesma amenizada.

Zagueiros condenaram o drible de Kerlon e lembro-me de Kleber, (Corinthians, Internacional, seleção brasileira) que disse na época que também o quebraria se fizesse o mesmo à sua frente.

Muricy Ramalho, na ocasião técnico do São Paulo e hoje defensor das fintas de Neymar mantem coerência, pois julgou na época que o drible da foca nada tinha de humilhante ou ofensivo, apenas que requeria uma boa dose de prudência por parte de Kerlon.

O atacante mineiro está hoje com 25 anos completados no último dia 27 de janeiro e depois da agressão sofrida diante de Coelho outras vieram encurtando uma das carreiras que se desenhava como das mais promissoras.

Correu mundo, andou pelo Inter de Milão, pelo Verona, pelo Ajax de Amsterdam, ano passado esteve jogando sem maior destaque por um time da 3ª. divisão japonesa, o Fujieda, depois voltou ao Brasil, jogou por pequenas equipes do interior mineiro e hoje, sinceramente, não sei se ainda joga profissionalmente.

Repito, esse jovem que poderia estar brilhando de forma esfuziante no futebol de hoje foi em tempos recentes uma das mais promissoras figuras.

Seu drible com marca registrada o tirou de cena ao ter seus arranques cortados por desejar imprimir algo de novo e do gosto do público ao modorrento futebol que hoje estamos vendo.

Neymar fará 21 anos mês que vem e rogo aos céus que não apareçam carrascos reprimidos em seu caminho já que a alegria que o futebol pode proporcionar não pode morrer nos carrancudos defensores que não aceitam ser driblados.

(Flávio Araújo)


Saiba mais sobre Flávio Araújo

Flávio Araújo, nasceu na cidade paulista de Presidente Prudente, lá iniciou sua carreira no rádio em 1950.

Depois militou no rádio esportivo e na imprensa esportiva da cidade de São Paulo cerca de 30 anos.

Trabalhou de 1957 até 1982 na Rádio Bandeirantes, onde se consagrou um maravilhoso narrador esportivo.

Flávio Araújo em 1960 narrando pela Rádio Bandeirantes, em Cáli, na Colômbia.

Encerrou suas atividades na cidade de São Paulo em 1986 na Fundação Cásper Líbero como Superintendente de Esportes da Rádio e TV Gazeta, nos tempos do saudoso Constantino Cury no comando do tradicional grupo de comunicação da Avenida Paulista.

Posteriormente trabalhou por mais 10 anos como comentarista esportivo na Rádio Central de Campinas-SP (de propriedade do ex-governador de São Paulo Orestes Quércia).

Flávio Araújo também foi co-proprietário da Rádio Cultura-AM de Poços de Caldas-MG.

A narração do milésimo gol do Rei Pelé escolhida pelos produtores do filme Pelé Eterno para integrar a obra é de Flávio Araújo.  Aliás, segundo Milton Neves, Flávio Araújo foi o locutor que mais narrou jogos do glorioso Santos Futebol Clube e gols do Rei Pelé.

Flávio Araújo e Milton Neves em 2001.

Ao longo de sua brilhante carreira transmitiu tudo sobre futebol, boxe, basquete e automobilismo.

Atualmente Flávio Araújo reside numa bela e tranquila cidade do interior paulista, onde ainda milita com histórias do futebol escrevendo colunas para sites e jornais.

Vale a pena conferir abaixo entrevista concedida, em 2009, por Flávio Araújo para André York do Programa Arremate Final. Contém áudios espetaculares de narrações de Flávio Araújo.

Bom, é isso aí! O Blog DNA Santástico, na figura de seu mantenedor Edmar Junior, agradece ao Sr. Flávio Araújo pela autorização para publicação de vossos textos no blog e parabeniza-lhe pelos excelentes serviços prestados ao esporte ao longo de toda sua trajetória.

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