Pelé, primeiro e único Rei do Futebol, tem 73 anos e deixou os campos quase quatro décadas atrás. Na fase derradeira de carreira gloriosa, ganhou uns milhares de dólares nos Estados Unidos; dinheiro para forrar o pé de meia. Mesmo após tanto tempo de aposentadoria, não sai de cena. Mais do que isso, ainda incomoda, como nos tempos em que era o terror e o encanto dos adversários.
Não passa semana sem que Pelé apareça na mídia, por publicidade ou por encontro com algum figurão ou por declaração polêmica. E tudo o que diz provoca barulho, proeza reservada só aos personagens realmente importantes, que contam. Não os meteoros que surgem e desaparecem num estalar de dedos. O mito é forte.
Mas virou moda, de uns anos para cá, buscar números, dentro de campo, que diminuam o que Pelé fez. Ou caçar afirmações que o desmereçam. Nunca é demais lembrar, que as proezas do Esportista do Século 20 foram obtidas em época sem marketing agressivo, sem tevês a cabo, muito menos mídias sociais, internet e outros babados tecnológicos. A lenda espalhou-se pela consistência dela mesmo, pelo extraordinário poder de sedução e magia de dribles, gols, carisma do astro. Pelé, na prática, antecipou-se à globalização.
Pelé é cidadão do mundo, reverenciado por onde passa. O passaporte que apresenta, nas alfândegas, é o sorriso dele. E basta. O documento em papel não significa nada além de formalidade. Os carimbos são estampados com reverência e constrangimento dos agentes de imigração. Pelé provocou trégua numa guerra na África, para que facções inimigas pudessem ir ao estádio vê-lo em ação. Pelé teve expulsão revogada, em amistoso nas Américas, por pressão da torcida, que não admitia sua saída. O juiz voltou atrás.
Aqui, no entanto, Pelé é desdenhado, muitas vezes ridicularizado. Desrespeitado e diminuído. Nota-se certo prazer mórbido em escarafunchar alguma estatística em que ele, supostamente, seja ultrapassado. Repare como, vira e mexe, aparece uma manchete dizendo que Fulano “fez o gol que Pelé não conseguiu” (em geral, antes do meio-campo). Pra ficar no superficial.
Pelé já foi cotejado com Di Stefano, Maradona e agora com Messi, para citar os mais famosos. Procuram-se aspectos em que estes craques sejam mais brilhantes do que o brasileiro. Dia desses, saiu que Cristiano Ronaldo está perto de igualar “recorde de gols de Pelé num ano”. Só que tal marca já havia sido estabelecida por Gerd Muller e Messi. Por que a referência a Pelé? Em recente jogo com o Chile, um repórter de tevê notou que, se Robinho marcasse, superaria Pelé em gols em amistosos contra os vizinhos andinos! Robinho fez o gol, e o locutor ironizou. “Superou Pelé…”
No início dos anos 2000, um jornal descobriu que Robinho tinha início de carreira, no Santos, melhor do que Pelé. Puxa, nossa! Depois, que Neymar tinha aproveitamento melhor do que Pelé. E por aí vai… Um tédio só.
Lamentáveis as pegadinhas que armam para Pelé. Por ser acessível, disponível, atencioso, paciente, constantemente cai em ratoeiras que lhe são armadas. Como não se nega a responder sobre o que quer que seja – não por empáfia, mas por simplicidade -, comete deslizes. Que na sequência, viram destaque na mídia e motivo de gozação. Mesmo assim, jamais foi grosseiro com imprensa. E poderia sê-lo, pois é o Rei. Acima de tudo, é Pelé – por isso não agride, não perde a linha, a altivez.
Não é preciso concordar com o pensamento de Pelé. Ele é incoerente, frágil, imperfeito, Tem medos e comete equívocos, como você, como eu, como o papa, como qualquer ser humano. Ainda bem. Mas é uma instituição, um herói nacional. E como tal deveria sempre ser tratado.
Na estreia do Brasil na Copa de 2002, foi distribuído papel com as autoridades presentes no estádio. Antes de cada uma, vinha uma série de referências, títulos, nome completo. O último nome da lista? “Pelé”. Apenas. Precisava de mais explicação?
Publicado originalmente em: O Estado de São Paulo por Antero Greco.